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Capítulo 2

     — Não acredita em mim? Tô dizendo que daqui a pouco eu vou. Vá na frente e pegue nossos lugares.

     Iza franziu os lábios, mas concordou com a cabeça. Ela pegou sua mochila estampada de girassóis e colocou nas costas, fazendo uma careta. A mochila dela estava sempre pesada, lotada com o caderno, livros da biblioteca, garrafinha d'água e um estojo de canetas coloridas que, para mim, eram realmente desnecessárias.

     — Vê se não se atrasa muito, ou vai acabar levando falta.

     — Pode deixar — tranquilizei-a.

     Izabelle se afastou em direção ao prédio de Administração, mas olhou para trás algumas vezes, e acenei para ela. Quando a perdi de vista, levantei-me da cadeira do restaurante universitário, coloquei minha mochila nas costas e saí dali.

     Se tinha uma coisa que eu não entendia em mim era a vontade que eu sentia de ficar sozinho. Por um lado, queria ficar rodeado pelas pessoas que eu amava, aproveitando a companhia delas enquanto eu ainda podia; por outro, sentia quase uma necessidade de ficar afastado de todos. Quando alguém conhecido me via, o primeiro assunto que surgia era minha saúde física e mental. Eu sabia que faziam isso porque se importavam comigo, se preocupavam, mas bater naquela mesma tecla uma e outra vez me sufocava, eu ficava exaurido de repetir que estava seguindo o tratamento e tomando os remédios. Izabelle era uma dessas pessoas. Por mais que eu gostasse de ficar ao lado dela, também queria ficar sozinho.

     Observando a noite dominar o céu, fui para um canto afastado do campus. Sentei-me no banco de concreto e peguei meu caderno da mochila. Eu o abri nas últimas páginas, onde tinha rabiscado inúmeras coisas e frases. Peguei uma caneta e comecei a dar "vida" aos pensamentos que me perturbavam. Eles saíam da minha cabeça para o papel na forma de monstros e rostos deformados. Não sabia como me livrar do que sentia, mas o terapeuta dissera que escrever e desenhar eram expressões artísticas e podiam ajudar a atenuar as emoções no meu peito.

     Perdi a noção do tempo enquanto trabalhava no meu caderno. Estava concentrado nos desenhos quando um grupo de estudantes se aproximou de mim. Fechei o caderno de imediato e levantei o rosto para ver o que queriam.

     — Que foi? — Perguntei. Eu conhecia a maioria deles, eram meus colegas em algumas matérias do curso.

     — Por que você deixou sua namorada sozinha na aula hoje, arrebentado?

     — Ela não é minha namorada, e se eu vou ou deixo de ir pra aula não é da sua conta — murmurei, sem paciência.

     — Nossa, ele tá irritadinho — zombou o cara maior, que parecia ser o líder dos palhaços.

     Pisquei tranquilamente. Se tinha uma coisa de que eu não tinha medo era de apanhar. Já tinha sofrido bullying antes e isso não era novidade. Entretanto, com o tempo, aprendi que o que a pessoa que faz bullying mais quer é a atenção, é a plateia assistindo ele ser dominante sobre alguém.

     — Com licença — disse, enfiando minhas coisas na mochila e me levantando.

     — Ei, eu não terminei de falar com você!

     — Mas eu não tenho nada pra falar com nenhum de vocês — retorqui, passando pelo grupo.

     Antes que pudesse agir, duas mãos acertaram minhas costas e me empurraram. Eu ainda andava mancando por causa do "acidente" que tinha sofrido, então me desequilibrei e caí como um saco de batatas.

     Puta que pariu, não tinha paciência pra isso... Nem força para enfrentá-los.

     Continuei no chão, sem nem tentar me levantar, e logo ouvi um deles falando:

     — Vamos embora, nem vale a pena a gente perder nosso tempo com isso aí.

     Eu não podia concordar mais com aquele cara. Ouvi passos se afastando e olhei para trás. Esperei um pouco mais e me apoiei nos braços para me levantar. Meu corpo inteiro doía, combinando com as outras sensações dentro de mim. Afastei a sujeira das roupas e bati as mãos umas nas outras antes de pegar minha mochila do chão, colocar nas costas e começar a caminhar em direção ao prédio de Administração. Aquela segunda aula era mais suportável, Iza gostava, e nem comentaria nada sobre eu ter faltado a primeira.

     — Vi o que rolou ali.

     Olhei para os lados, interrompendo meus passos ao encontrar a dona da voz: Uma moça de uns 25 anos, que mascava um chiclete despreocupadamente. Eu não a conhecia nem sabia o que dizer. Dane-se que ela tinha visto, o que isso mudaria na minha vida?

     — Meu nome é Camila, conheço aqueles caras, são todos idiotas. Não ligue pra eles.

     — Prazer. Não ligo, não. Tô bem.

     — Quem fica repetindo que está bem ou diz isso sem nem perguntarem é porque, geralmente, está sentindo justamente o oposto. Você não tá bem.

     Pisquei, surpreso e irritado de uma só vez, perguntando-me o motivo daquela pessoa ter me parado pra falar besteira.

     — Hum... ok. Preciso ir, tchau.

     — Espera — disse, mas eu ainda não tinha dado nem um passo. — Você nem se apresentou. Qual é o seu nome?

     — Gustavo.

     — Gustavo, sua testa está sangrando. Você sabia disso? — disse, sorrindo um pouco.

     — Ah, que droga... — Chequei minha testa com os dedos, e logo encontrei a umidade do sangue na minha têmpora.

     — Vem comigo, vou limpar isso aí. Você vai se sentir melhor.

     — Não posso, tenho aula agora.

     — E você vai pra aula desse jeito? Só vai dar mais motivos pra fofocas e pra te encherem o saco.

     Troquei o peso dos pés, olhando ao longe, para o prédio de Administração, onde eu sabia que Izabelle esperava por mim. Eu tinha dito que iria logo depois dela. Se bem que ela já devia estar acostumada com meus sumiços.

     — Ok... vamos — concordei em acompanhar aquela estranha. Na verdade, não era tão estranha assim. Sabia o nome dela, Camila, e nada mais.

     Andamos por alguns minutos, e paramos na parte de trás de um prédio que eu não fazia ideia a qual curso pertencia. Um grupo de pessoas conversava, rindo e sorrindo, sentados em bancos e recostados na parede pichada.

     — Pessoal, esse é o Gustavo.

     — Fala aí, mano — disse um dos rapazes.

     Refreei-me de repetir "aí, mano", porque nem todo mundo entendia meu senso de humor e já tinha quase apanhado hoje, não correria esse risco de novo.

     Camila disse alguma coisa e todos riram. Eu não tinha entendido, mas acompanhei com uma risadinha. As pessoas me convidaram pra sentar e aceitei, pois senti minha cabeça girar com uma tontura repentina.

     — Sara, cadê seu kit de primeiros socorros? — Camila perguntou a uma menina, que abriu a mochila e começou a procurar.

     — Não trouxe, deixei em casa. Foi mal, Cá.

     — Desculpa, Gustavo. Acabei te trazendo aqui pra nada — disse ela, virando-se pra mim, mas dispensei a preocupação. Assim que minha cabeça parasse de girar, retomaria meu caminho.

     — Mas olha só o que eu tenho aqui, um pedacinho do paraíso...

     Todos se empolgaram ao ouvir a garota, amiga da Camila, então também me interessei para saber do que se tratava.

     Ela tirou cigarros improvisados da mochila. Não, quem eu queria enganar? Não era tão ingênuo assim. Aquilo era maconha enrolada em papel de seda.

     Ok, devo me levantar e ir embora nesse exato momento.

     Se eu fosse pensar em algo de bom que minha mãe tinha me dado nessa vida, poderia considerar o exemplo dela de que não deveria me aproximar das drogas nunca.

     — Preciso ir — disse, engolindo em seco.

     — Calma, você já deve ter perdido a sua aula. Fica aqui com a gente, você pode relaxar — disse Camila, sentando no colo de um cara, provavelmente seu namorado.

     — Não, eu acho que não.

     — Qual é o problema? Somos gente boa.

     — Eu sei, eu sei — respondi, evitando encontrar o olhar de qualquer um deles. — Mas não... não quero fazer parte disso.

     — Disso o quê? — perguntou, franzindo o cenho em confusão. Olhei rapidamente para o cigarro que a amiga de Camila acendia. — Aaah! Ué, você não precisa fumar se não quiser, Gustavo.

     Assenti. Eu sabia disso, mas, mesmo assim...

     — Tá com medo de quê? Você sabe que maconha não vicia, né? — perguntou Sara.

     — Sei, sim. Mas é que...

     — Que drama da porra — disse o cara que segurava Camila. — Nem experimentou e fica julgando. Se for pra ficar olhando pra gente com essa cara, é melhor ir embora.

     — Não tô julgando vocês, longe disso — falei rapidamente, embora eu tivesse feito isso um segundo atrás, na minha cabeça.

     — Então toma um trago — ofereceu Sara, esticando o cigarro na minha direção.

     Fiquei sem reação. Ninguém nunca tinha me oferecido droga nenhuma antes. Como recusar de forma gentil, de um jeito que não fosse considerado nem arrogante nem covarde? Antes que eu respondesse, Sara falou novamente, sorrindo.

     — Você vai curtir a onda, é sério. Imagine como deve ser flutuar no espaço, mas sem sair do lugar. Você vai sorrir sem motivo e rir de qualquer besteira, é a melhor coisa do mundo pra relaxar, confia em mim.

     Pisquei, olhando pra Sara. O que ela tinha dito realmente me fez imaginar, e só de pensar naquelas sensações eu as queria. Rir sem motivo... quando eu tinha rido sem motivo algum? Não conseguia me lembrar. Nem mesmo as piores piadas me faziam dar aquele risinho de vergonha alheia.

     — Não vicia, né...

     — Claro que não, pô. E já é legalizado em um monte de país. Só que a gente é atrasado, nossos governantes são conservadores e... como os velhos dizem?! "Caretas" demais pra liberar pra gente usar. Eu acho que a legalização seria o melhor pra todos.

     Engoli em seco, tentado, curioso. Olhei para o cigarro na mão de Sara, e ele parecia brilhar na minha direção.

     Só uma vez não faria mal algum. Só uma vez, eu gostaria de saber como seria rir sem motivo, como seria flutuar...

​

O que Gustavo deve fazer?

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