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Prólogo

     Eu sempre tive a curiosidade de saber como seria voar. Não voar de avião ou de helicóptero. Só de pensar em estar preso numa caixa de metal há vários metros do chão me dava aflição. Eu queria saber como era voar como os pássaros. A liberdade devia ser indescritível. Talvez, o mais próximo que o ser humano chegou para imitar as aves foi com a asa-delta.

     Eu via nos vídeos as pessoas pulando das montanhas no Rio de Janeiro e sobrevoando paisagens de tirar o fôlego. Eu já quis experimentar isso um dia.

     Mas não mais.

     Quando acordei esta manhã e olhei meu calendário na mesinha de cabeceira, não achei que seria assim, tão... sem emoção. Meu tênis gasto esfregou contra o concreto quando eu dei mais um passo em direção à minha liberdade. Sem paredes ao meu redor e com o sol às minhas costas, via o céu claro e livre de nuvens. Era um belo dia para voar, sem dúvidas. Se minha mãe estivesse aqui, apoiaria minha decisão. Já se minha tia estivesse, não tinha tanta certeza. E apenas os transtornos que eu causaria a ela ainda me seguravam no topo do edifício.

     Mas eu tinha de ir. Não aguentava mais os sentimentos presos no meu peito. Eles me sufocavam, provocavam milhares de dúvidas na minha cabeça, e era como se nunca fosse ficar em paz. Apesar do silêncio no terraço, com apenas o vento e os pássaros, havia barulho na minha mente. Um barulho ensurdecedor.

     Mas, quando eu voasse, aquilo pararia, a dor desapareceria, os questionamentos não me perturbariam e, enfim, eu estaria livre. Tudo terminaria.

     Engoli em seco, aproximando-me mais da beirada. Apoiei-me na mureta do prédio e subi. Olhei para baixo e imaginei como um pássaro faria. Ele não temeria mergulhar no vazio. Eram seis andares embaixo de mim. Seis andares me separavam da liberdade que eu tão desesperadamente precisava.

     Só bastava…

 

     Um

​

     pequeno

​

     passo.

​

​

     Caí.

​

     Ou melhor, voei. 

​

​

     E, de repente, dor. Mas, pelo menos, era uma dor passageira.

Não pensei em nada enquanto caía. Acho que não deu tempo. Não me lembro se a vida passou diante dos meus olhos, mas acho que não. A vida nunca teve muita coisa boa para me mostrar, de qualquer forma, e qual era o sentido de rever desgraças se o que eu queria era me livrar delas?

     Meu nome era Gustavo Castelo, e meu sonho era ser livre.

​

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Capítulo 1

     — A gente vai perder a aula, Guga — disse Izabelle, minha única e melhor amiga.

     — E você se importa?

     — É claro que sim. Não podemos repetir essa matéria de novo! Isso só vai atrasar nossa formatura.

     Formatura. Que piada. Ter um diploma não significava nada. Não era garantia de um bom emprego, de um salário digno, e muito menos de felicidade.

     — Gustavo — chamou minha atenção quando não falei nada. Olhei para ela. — Você tá bem? Tem tomado os remédios e indo na terapia?

     — Claro, Iza. — disse, mas a preocupação na expressão dela deixava claro que não tinha acreditado. — Só não tô animado pra assistir uma aula de uma matéria que eu detesto, de um curso que eu odeio.

     — Então troca de curso, já falei isso pra você milhares de vezes!

     — De novo?! Estamos no sétimo período de Administração, não vou trocar de curso. Agora é tarde demais, vou ter que aguentar.

     — Vai aguentar e o quê? Passar o resto da vida infeliz com a escolha profissional que você fez?

     — Iza, cala a boca. Por favor, só… 

     Inspirei, engolindo em seco. Não queria discutir o assunto. Era tarde demais. Não tinha investido tempo e material durante anos para abandonar tudo na reta final. Eu sabia disso e ela também. Mas ela era uma otimista, alguém que olhava pra chuva e sorria porque as árvores da cidade teriam água, porque o clima ficaria mais fresquinho. Eu olhava e só imaginava o engarrafamento infernal que pegaria para chegar em casa, em pé, no ônibus lotado.

     — Tá, não vou falar mais nada, mas vamos pra aula.

     — Pode ir na frente, eu alcanço você.

     Izabelle trocou o peso dos pés, observando-me. Desde que eu tinha pulado do sexto andar e, por alguma ironia ou crueldade do destino, sobrevivido, ela tinha virado quase a minha fiscal particular. Passei meses na emergência do hospital, meio-morto, meio-vivo; mas, mesmo assim, vi a barriga da minha tia crescer dia após dia. Ela estava contente com a chegada do bebê, um sonho que sempre quis realizar e, aos 40 anos, conseguiu. Ainda assim, chorava ao me visitar, quando pensava que eu estava dormindo ou dopado.

     Dei prejuízo a minha tia. Prejuízo e desgosto, quando tudo que eu queria era ficar livre, principalmente da sensação de que atrapalhava a vida dela. Izabelle, que procurava ver um lado bom em tudo, disse que pelo menos eu tinha ficado em hospital público e minha tia não teria uma conta enorme para pagar.

     Tia Suzana pagava tudo pra mim. Ela me dava alimentação, moradia, roupas limpas. Tudo. Desde que minha mãe me deixou na porta dela, minha tia ocupou o papel da minha mãe sem ter essa obrigação. Eu era grato a ela, extremamente grato. E me envergonhava por desejar que as coisas fossem diferentes.

     Quando ela engravidou do namorado, tudo piorou. Eu sabia que seria deixado de lado. E aí, o que seria da minha vida? Como iria sobreviver, onde iria morar, o que iria comer?

     “Não é porque ela vai ter um filho que vai abandonar você”, Izabelle pontuou certa vez, quando compartilhei meu medo. Mas ela não entendia. Ela tinha sido desejada, planejada, os pais dela tinham uma condição de vida estável e confortável.

     — Você vai se atrasar pra aula, Iza. Sério, pode ir na frente.

     — Nada disso. Você vem comigo. Por favor, Guga, vem.

O que Gustavo deve fazer?

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