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Capítulo 4

     Seria fácil terminar com tudo isso. Para mim, pelo menos, seria simples. Uma super dosagem de um medicamento, um salto pela janela, e seria o fim. Eu finalmente aproveitaria do alívio que tão desesperadamente precisava.

     Quanto às pessoas que eu deixaria para trás... Minha mãe, ou melhor, minha tia, teria seu filho. Ela ficaria ocupada demais com o bebê para sofrer pela minha partida. Izabelle encontraria outro amigo. Se tiver sorte, alguém menos chato e inseguro do que eu.

     Pronto, é isso. Acho que minha morte afetaria só essas duas pessoas.

     Então, por quê não acabar com tudo logo de uma vez?

     Engoli em seco, colocando o rosto para fora da janela. Ali não era tão alto. Se, pulando do terraço do prédio, não tinha conseguido atingir meu objetivo, saltar de um lugar mais baixo seria ainda pior. Só ficaria com mais sequelas, e sem minha liberdade desse mundo.

     Voltei para cama e me sentei. A cada segundo silencioso que se passava, minha vontade se tornava mais firme. Eu podia fazer isso. Seria o melhor para mim e para todo mundo.

     Mas precisava fazer tudo direito dessa vez. Inclusive, me despedir. Da outra, não deixei sequer uma carta, e isso era muito insensível da minha parte.

     Respirei fundo e me levantei para conversar com minha mãe.

     Ela estava na sala, sentada numa poltrona azul desbotada. Aproximei-me com as mãos enfiadas nos bolsos da bermuda, notando que ela lia um livro sobre maternidade.

     — Tenho certeza de que já sabe tudo sobre esse assunto, mãe — comentei. Ela sorriu ao desviar os olhos da página para encontrar meu rosto.

     — Que nada, sempre temos mais alguma coisa para aprender. Você acha... que sou uma boa mãe?

     Confirmei com a cabeça, sorrindo um pouco.

     — Você é a melhor. Queria que fosse minha mãe de verdade.

     — Eu sou sua mãe de verdade, Guga — pontuou. — Você não ter nascido de mim não muda nada. Nunca te tratei como um sobrinho. Você é meu filho amado. E logo terá um irmãozinho.

     — É verdade — disse, apenas para deixá-la tranquila. Minha mãe de verdade estava internada em alguma clínica psiquiátrica, e não queria me ver. Eu tampouco queria vê-la. Tinha medo de terminar como ela. — Acho que eu deveria dizer mais vezes o quanto amo você, mãe. E o quanto sou grato por tudo que faz por mim.

     Ela expandiu os olhos, mas franziu o cenho. Tão surpresa quanto confusa, deixou o livro sobre as pernas e colocou as mãos nos quadris largos.

     — Eu também amo você, Guga. Por que disse isso assim tão de repente?

     — Sei lá. Só... — Só quero me despedir de verdade dessa vez, pensei. — Só senti vontade.

     Fui até minha mãe e a abracei como conseguia, com a barrigona entre nós. Eu queria poder ficar mais tempo, talvez até conhecer o bebê, mas era melhor não fazer isso. Eu não poderia ensinar a ele nada de bom, não faria minha mãe passar pelo constrangimento de me pedir para ficar longe.

     — O que você tem, Guga? — ela perguntou com os olhos brilhando, como se previsse que havia algo errado, e ficou mais difícil de controlar minha própria emoção. — Está tudo bem?

     — Uhum — respondi, e pensei em algo rápido para acrescentar, para deixá-la feliz: — Acho que vou voltar pro meu quarto e continuar estudando. Iza já foi embora, mas ainda consigo ler algumas apostilas hoje.

     — Está bem, querido. Você já sabe minha opinião sobre a sua faculdade, mas é você quem sabe se quer continuar ou não. Você é capaz de decidir tudo sobre sua vida.

     Olhei para ela por um longo minuto, apenas tentando gravar os detalhes da sua expressão na minha memória. Quem sabe, quando minha hora chegasse e "a vida passasse diante dos meus olhos", eu a veria. Eu partiria um pouco mais feliz se isso acontecesse, pois a amava com todo meu coração.

     — Valeu, mãe.

     Ela sorriu, e eu retribuí, pigarreando em seguida.

     — Eu... vou lá. Estudar.

     — Tá bem, querido. Mais tarde eu levo um lanche pra você.

     — Não precisa ter esse trabalho — comentei. Não queria que ela encontrasse meu corpo logo. Eu temia que a emoção fosse forte demais e isso afetasse ela e o bebê.

     — Não é trabalho algum — garantiu, levantando-se. Ela segurou meu rosto e me deu um beijo na bochecha. — Vá estudar.

     O nó na minha garganta se intensificou quando voltei para o quarto, afastando-me dela aos poucos. Estávamos longe apenas alguns metros de distância, mas parecia uma distância muito, muito maior.

     Fechei a porta do meu quarto sem alarde, fazendo o mínimo de barulho possível. Na última gaveta da minha mesinha de cabeceira, encontrei os remédios que tinha guardado. Peguei as caixas nos braços e me sentei na cama.

     Será que ia doer muito ou seria uma morte rápida?

     Balancei a cabeça, decidido. Não importava como seria, eu tinha que fazer, precisava chegar do outro lado, não importando qual fosse, precisava me livrar daquela enxurrada de pensamentos e sentimentos sufocantes.

     Abri as caixas uma por uma e juntei todos os comprimidos. Surpreendentemente, eu ainda não chorava.

     Engoli os comprimidos com dificuldade, tomando o copo d'água que tinha na mesa de cabeceira da cama. Respirei fundo e me deitei. Agora era só esperar.

     Esperar e torcer para ser rápido. Se fosse indolor, melhor ainda, embora eu duvidasse que isso seria possível.

     Minutos depois, comecei a sentir coisas estranhas no meu corpo. Abracei aquelas sensações, entregando-me. Não adiantava tentar lutar contra elas.

     Minha respiração mudou e passei a engasgar. Meu coração acelerava drasticamente, como nunca tinha acontecido antes, e me forcei a não falar nada, a não gritar, a não pedir ajuda. Me cobri com o lençol, mesmo suando muito, e fechei os olhos.

     O escuro me dominou, e me senti caindo em espiral. Não havia mais como parar aquilo, não havia salvação. Eu estava perdido em mim mesmo e no infinito da incerteza do que eu encontraria em seguida. Se é que encontraria alguma coisa.

***

     Abri os olhos puxando o ar pela boca como se estivesse sufocando. Tossi com força, colocando uma mão sobre o peito dolorido. O que estava acontecendo? Por que eu tinha acordado?

     Pisquei, confuso, e olhei ao meu redor. Na cabeceira da cama, o copo d'água que eu sempre deixava ali estava vazio. Ao seu lado, o calendário de papel tinha pequenos X riscados nos dias que já haviam se passado e o número 19 estava destacado num círculo vermelho. Peguei o calendário nas mãos e o analisei.

     "Serei livre" estava escrito em cima do número. Engoli em seco, vendo meu tênis gasto separado em um canto junto com a roupa que eu tinha escolhido. Peguei meu celular para verificar a data do dia. 19. Eu tinha marcado no calendário para pular do prédio no dia 19.

     Eu tinha voltado no tempo? Ou tudo não passou de um sonho em que vislumbrei meu futuro?

     Esfreguei os olhos, sentindo minha cabeça pesada. Mas, pelo menos, meu corpo não estava dolorido e minha perna parecia boa. Que porra estava acontecendo?

     — Filho, você tá pronto? Iza tá lá embaixo esperando você.

     — Me-me esperando? Pra quê?

     Minha mãe abriu a porta do quarto e olhou pra mim.

     — Como pra quê? Vocês combinaram de sair juntos hoje. Não acredito que depois de tanto esforço e de tanta coragem que você reuniu, vai desistir de se declarar.

     — Eu vou me declarar pra ela hoje?

     — Sim, foi o que você me contou.

     Pisquei, assentindo com a cabeça. Talvez, no passado, nesse mesmo dia, Izabelle tivesse me rejeitado e acabado com nossa amizade, talvez isso tivesse me dado o empurrão que faltava para eu pular do prédio. Eu não sentia que tinha sonhado, sentia que tinha voltado no tempo e a vida estava me dando uma nova chance.

     Minha mãe suspirou e colocou uma mão sobre a barriga. A expressão dela, franzindo o cenho e comprimindo os lábios, me alertou de que havia algo errado.

     — Está sentindo alguma coisa?

     — Tenho quase certeza de que está chegando a hora. Que Deus me ajude.

     — Não se preocupe, mãe, eu tô aqui do seu lado, vou ajudar você.

     — Não, filho. Você tem que sair com Iza, ir atrás dos seus sonhos.

     — Eu vou falar pra ela subir, ela pode ajudar a gente. Mãe, nada é mais importante pra mim do que você. — Levantei da cama e a ajudei a se sentar. — Fique quietinha aqui que eu já volto.

     Coloquei a roupa de qualquer jeito e desci rapidamente para o saguão do prédio. Iza estava arrumada, usava um vestido florido e tinha o cabelo trançado. Eu estava com uma roupa amarrotada, morrendo de fome e, para coroar, com mau hálito matinal.

     — Iza, acho que tem alguma coisa errada com minha mãe e o bebê — disse, sem nem lhe cumprimentar. Ela ficou em alerta, não me decepcionando. Ela não se chatearia por não podermos sair naquele momento.

     — O que estamos esperando? Vamos ajudar, chama uma ambulância.

     — Melhor a gente chamar um táxi pra ir pro hospital. Se você encontrar algum, para ele e faz nos esperar. Eu vou buscar minha mãe e a gente vai.

     — Ok! — afirmou, eficiente, correndo pra portaria.

     Pegamos a bolsa da maternidade, eu engoli um sanduíche que achei na geladeira e, minutos depois, eu já tinha colocado minha mãe no banco de trás do carro. Pelas minhas contas, ainda não estava na hora do bebê nascer, mas sentir dor nunca é um bom sinal. Talvez fosse nascer prematura. Izabelle sentou no banco da frente e eu no banco de trás com minha mãe. Eu percebia que ela tentava segurar o choro, estava assustada e contendo as dores que sentia.

     — Aguente firme, mãe, vamos chegar logo, logo.

     Ela assentiu com a cabeça, mordendo o lábio. Sequei a umidade da sua testa com meu casaco e peguei sua mão entre as minhas.

     — Moço, será que dá pra ir mais rápido?

     — Não dá. Olha só, tá tudo engarrafado. Deve ser por causa da passeata dos professores.

     — Ai, meu Deus! — exclamou minha mãe, com as lágrimas escorrendo pelo rosto.

     — Calma, calma, mãe, vai ficar tudo bem.

     — Como??? Vai ficar tudo bem como?! — inquiriu. Eu não sabia, mas era o que as pessoas diziam quando alguém estava nervoso e não conseguia manter o equilíbrio. — Eu acho que vai nascer, Gustavo. Eu tô sentindo.

     — Meu Deus!!! — disse Izabelle no banco da frente.

     — No meu carro?!

     — Liga pra emergência, pra polícia, pros bombeiros, liga pra qualquer lugar, eu preciso de ajuda!!!

     Peguei o celular e disquei o número dos bombeiros.

     — Alô, minha mãe tá grávida e tá passando muito mal! Precisamos de ajuda! — gritei ao telefone assim que atenderam.

***

     Eu sabia que seria complicado, que essa gravidez não era a mais estável e comum de todas, mas não fazia ideia de que eu teria de fazer o parto. O trânsito estava todo bloqueado, os bombeiros não conseguiram chegar a tempo e fui eu que tive que trazer Leonardo ao mundo. Segui as instruções da moça que falava comigo pelo telefone e fiz tudo. Não sabia como tinha tido estômago, como tinha sido forte o suficiente para ter forças e ainda dar forças pra minha mãe, mas consegui. Eu havia trazido uma vida pro mundo, meu irmãozinho Leonardo, e chorei de emoção ao segurar aquela criaturinha tão pequena, tão frágil em meus braços. Eu faria de tudo para protegê-lo, pra não permitir que algo de ruim acontecesse com ele e com minha mãe.

     Quando o bebê apertou meu dedo com a mãozinha minúscula, senti-me ainda mais forte. Ele dependia de outras pessoas para sobreviver, dependia de alguém que o protegesse e o alimentasse, e eu jamais daria as costas para isso, não conseguiria. Como era possível ele não saber sequer falar e eu já o amar?

     Sorri em meio às lágrimas, comemorando com Izabelle, garantindo pra minha mãe que Leo estava bem e tranquilizando o motorista, que fez o máximo que pôde para acelerar o trajeto e nos levar para o hospital. Assim que chegamos, minha mãe e Leo foram recepcionados e atendimentos.

     Na sala de espera, eu estava sentado refletindo sobre tudo que tinha acontecido quando senti algo gelado me tocar. Iza havia sentado ao meu lado e segurava minha mão. Olhei para ela, buscando seu olhar, e ela sorriu, corada, antes de falar.

     — Você foi muito corajoso hoje, Guga. Acho que eu teria pirado ou desmaiado no seu lugar. Estou orgulhosa.

     Sorri também, sentindo-me estranhamente... leve. Minha mãe e meu irmão logo seriam liberados, voltaríamos pra casa e seguiríamos nossas vidas. Agora tínhamos mais uma vida para cuidar e proteger, e eu estava ansioso para acompanhar o crescimento de Leo.

     — Valeu, Iza. E sobre... hum... — Pigarreei, tomando coragem. — Nossa saída... será que ainda vai rolar?

     — Vai, sim.

     Sorri mais amplamente, a esperança brotando meu peito. Apertei um pouquinho mais a mão dela e ficamos daquele jeito, em silêncio.

Guga e Iza

Fim

Nota da autora:

Segundo a OPAS, cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos, e essa é a segunda principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos. 

Uma das formas de prevenção é a identificação precoce, tratamento e cuidados de pessoas com transtornos mentais ou por uso de substâncias, dores crônicas e estresse emocional agudo.

Escrevi essa história inspirada pela música Girassol. Foi a forma que encontrei de tentar ajudar todos que passam por situações difíceis e que precisam de palavras de conforto.

Lembre-se: sempre há uma solução para o problema, seja ele qual for, por mais desafiador que pareça.

Espero, sinceramente, que você tenha gostado da leitura.

Se apenas uma pessoa for tocada por essa história, já terá valido a pena.

 

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O meu propósito é escrever histórias transformadoras! ♡

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Se você quiser e achar que essa história merece, faça uma doação.

Ficarei muito grata. A obra Girassol está e sempre estará gratuita para leitura

Se quiser, comente: 

Você pode dizer se gostou da história, o que mais gostou, deixar uma palavra de conforto para alguém que está precisando ou, até mesmo, compartilhar alguma coisa que esteja te machucando.

Seja gentil com todos, que o mundo retornará a gentileza para a sua vida!

***

10 de setembro - Dia Mundial de Prevenção do Suicídio

Se você precisa de ajuda, entre em contato com o CVV (Centro de Valorização da Vida: Acesse ou ligue 188

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© 2020 por Paloma Brito | Todos os direitos reservados

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